segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Obstáculos Epistemológicos à Reforma Policial


Conversa com Bachelard...


Num desses dias, angustiado com as altas taxas de criminalidade e com os descaminhos com que a política de segurança pública vem sendo conduzida em todos os níveis de governo, apelei para o ser supremo, pedindo a ele que interviesse nos corações e mentes de nossos governantes, iluminando com sabedoria e razão, as decisões políticas que efetivamente poderiam fazer a diferença. Pedi também uma intervenção divina no sentido de agraciar os gestores da área de segurança pública com a superação de suas próprias vaidades e com a libertação do próprio espírito em relação às velhas práticas empíricas, amoldadas em padrões paradigmáticos que se convertem em doutrinas dogmáticas, muito distantes das verdadeiras demandas e expectativas da sociedade, longe, portanto, da possibilidade concreta de intervir positivamente sobre a realidade.
Nessas andanças metafísicas, qual não foi o meu espanto ao reencontrar-me com um velho amigo francês chamado Gaston. Extremamente solidário com a causa por mim pleiteada e numa clara tentativa de trazer um pouco de conforto a minha pobre alma, Gaston pediu licença, como toda a autoridade de quem há pouco tinha enfrentado um dilema similar, e me disse com toda ternura:
Meu nobre amigo, antes de tudo fique tranqüilo e, por favor, não se aflija com as artimanhas do saber, pois o conhecimento é dinâmico e inerente ao ser humano. Tampouco se preocupe tanto com aquilo que é empírico, posto que é tão somente a expressão de um conhecimento diferente daquele que costumamos chamar de científico. São conhecimentos diferentes, obtidos por métodos distintos. Não há, portanto, concorrência equivalente entre ambos. O que de fato é bastante preocupante, e nesse ponto concordo plenamente contigo no que concerne ao seu sentimento de aflição, é a dificuldade e a lerdeza que se verifica no tratamento político que é dado pelos governantes para viabilizar a superação de determinados obstáculos epistemológicos que impedem o desenvolvimento científico dos profissionais das organizações policiais aí no Brasil. É bom ressaltar que os obstáculos em si não são o problema, haja vista que sem eles não haveria estímulo ao desenvolvimento científico. O principal problema reside na pusilanimidade com que autoridades do Poder Público tratam essa questão. E é justamente sobre isso que gostaria de tecer algumas considerações: independentemente do reconhecimento sobre a existência de fatores que obstaculizam a produção do conhecimento científico, mas que podem ser superados, conforme escrevi alguns anos atrás, existe outros que estão diretamente afetos a uma decisão política, no nível governamental ou institucional. Em outras palavras, o desenvolvimento do espírito científico dos profissionais de segurança pública não se resume à mera superação dos obstáculos epistemológicos. Demanda uma política pública de formação desse capital humano, com investimentos do Poder Público no que tange à capacitação e aperfeiçoamento dos seus servidores, esforço qualificado de estudo e de pesquisa por parte dos policiais e, principalmente, coerência axiológica entre teoria e prática. Sobre a superação de alguns obstáculos epistemológicos no campo da segurança pública, levando-se em conta o marco legal brasileiro e outros traços que permeiam a cultura organizacional das instituições policiais, diria o seguinte: em linhas gerais, o modelo adotado pelo Brasil de funções policiais bipartidas ensejou a configuração de dois pólos de atividades que caracterizam o trabalho policial. O primeiro pólo, exercido nas ruas pela Polícia Militar está baseado no paradigma militarista e o segundo, exercido no cartório pela Polícia Judiciária, está baseado no academicismo jurídico. Enquanto no primeiro prevalece o dogma doutrinário da força como expressão predominante da ação policial e o dogma doutrinário da hierarquia e da disciplina militar como expressão da ordem, o segundo abdica da vocação original do trabalho policial investigativo, orientado para a produção de provas e se dedica, seguindo o dogma doutrinário do direito, a administrar diferentes formas e leituras da produção da verdade. Meu caro, a partir dessa sucinta análise preliminar, ouso afirmar que: as expressões dogmáticas que governam o modo de fazer polícia no Brasil e, portanto, o modo de se fazer política, castra qualquer possibilidade de inovação e de ruptura com a inércia institucional. É muito difícil teorizar em ambientes políticos- institucionais dominados pela lógica dogmática que se exterioriza na forma recorrente de velhos paradigmas. Nesse contexto, meu velho amigo, é impossível fazer ciência, haja vista que dogmas e paradigmas impedem que seja estabelecida uma legitima relação entre sujeito e objeto, que são as partes constituintes da matriz essencial para a produção do conhecimento. Se a existência dos obstáculos epistemológicos, compreendidos estes como fatores inerentes e intrínsecos ao próprio pesquisador já constitui por si só um ponto de superação que precisa ser trabalhado em prol do desenvolvimento do espírito científico, o que dirá no caso do investigador que se encontra imerso num ambiente institucional de inércia. Nesse caso, como disse anteriormente, a questão é política e como tal deve ser tratada. Não obstante o reconhecimento dessa dificuldade extrínseca ao desenvolvimento do espírito científico, é muito importante, conveniente e oportuno destacar que o principal fator de superação desses obstáculos intrínsecos, reside basicamente na determinação e na constância do pesquisador fundamentalmente em face da relação estabelecida entre sujeito e objeto. Nesse sentido, meu amigo, como sugestão é necessário que se inicie aí no Brasil, desde já, uma campanha para pressionar os governos e para inflamar mentes e corações com vistas à ruptura desse estado de inércia. Destarte, de suma importância para o desenvolvimento do espírito científico nas organizações policiais brasileiras, é que, no âmbito da experiência comum, haja a contradição, que se critiquem e se refutem os dogmas e os pré-conceitos. Do que escrevi sobre os obstáculos ao desenvolvimento do espírito científico, lembro-o das seguintes questões que convém atentar: 1) pelo fato da experiência primeira estar imune a críticas ela mesma pode se converter no primeiro obstáculo ao desenvolvimento do espírito científico; 2) uma leitura equivocada do conhecimento geral enquanto doutrina do saber também pode se converter em obstáculo ao desenvolvimento do espírito científico; Faço este alerta em nome da razão e da premente necessidade de libertar as academias e os centros de formação policial dos grilhões imponderáveis de verdades e saberes tidos como absolutos e incontestáveis. Nesse caso, por exemplo, é recomendável, que no âmbito do processo de ensino-aprendizagem a que estão submetidos todos os policiais, especialmente em virtude da intensa variedade de disciplinas e da extrema complexidade de situações que caracteriza a dinâmica do trabalho policial, sobretudo, na dimensão cotidiana da gestão do serviço e do emprego de técnicas avançadas mediação de conflitos e de administração do uso legítimo da força legal, que a perspectiva holística esteja sempre presente e seja bastante valorizada na construção cultural do saber crítico que não pode ser confundido com o saber fragmentado, quase sempre de natureza instrumental. Nesse sentido, caríssimo amigo, a reprodução predominante das relações de subalternidade na hierarquia organizacional das polícias não deve e não pode, sob nenhum pretexto, ser transportada mecanicamente para a sala de aula. Aliás, diga-se de passagem, que no âmbito de um convívio democrático progressista, não há nenhuma contradição entre a liberdade de participação e expressão com o respeito aos valores da hierarquia e a disciplina.

Um abraço fraternal,

Bachelard

Postado por Carballo Blanco - Sexta-feira, 19 de Setembro de 2008
Fonte: http://agendadacidadania.blogspot.com/search?updated-max=2008-10-02T07%3A24%3A00-03%3A00&max-results=50

campos

quinta-feira, 30 de abril de 2009



O que a tragédia na educação pública tem a ver com a segurança

"(...) Fica claro que o Brasil está na condição de uma nave com todos os instrumentos em perfeito funcionamento, onde a tripulação tem todas as informações de que rumamos para um desastre, mas os procedimentos para evitar o pior deixam a desejar. O quadro é catastrófico, o que não surpreeende, mas continua e deve continuar a assustar: das mil escolas com as piores notas (do Enem), 965 são públicas: entre as mil melhores, apenas 36, ou 3,6% do universido delas, estão nesta categoria, basicamente federais. E o pior: encontram-se em estabelecimentos públicos 85% dos estudantes matriculados no ensino de nível médio. (...)
O trecho acima é do editorial do GLOBO de hoje intitulado "Brasil partido", que aponta o "abismo criado pela baixa prioridade que o Estado concede à instrução dos pobres". Sem dúvida a equipe de Aluízio Maranhão, o chefe dos editorialistas da Irineu Marinho, está de parabéns, por produzir tamanho alerta.
E o editorial prossegue:
"(...) Reportagens do GLOBO mostraram como, públicas e privadas, as melhroes escolas seguem princípios comuns, e de conhecimento geral: professores competentes, bem remunerados, assíduos, e alunos mantidos na escola bem mais tempo do que nos colégios públicos estaduais de baixo padrão".
A leitura que faço desse editorial é que o país vive hoje as consequências do desmantelamento de serviços públicos de primeira necessidade, como educação e saúde, que é o que garante de verdade a sobrevivência e o desenvolvimento dos mais pobres, sem que precisem recorrer ao paternalismo e a esmolas do Estado, seja na forma de bolsas-família ou bolsa-qualquer-coisa ou de cotas raciais e sociais. Sem aderir a qualquer teoria conspiratória, é mais do que óbvio que o modelo neoliberal falhou ao exacerbar na defesa do privado e no desprezo total ao que é público.
E tudo o que constatou o editorial sobre a educação pública pode-se verificar também na área de segurança. O fortalecimento da indústria da segurança privada - ainda que necessário, diante dos alarmantes índices de criminalidade das grandes cidades brasileiros - acontece praticamente ao mesmo tempo em que a segurança pública dá sinais de maus tratos e desmantelamento, a julgar pela precariedade de seus serviços e do nível de seus servidores, que tem cada vez menos condições salariais de investir em suas carreiras públicas. Só lhes resta então buscar espaço na segurança privada. E aí, o "bico" passa a ser o emprego público.

Jorge Antonio Barros -
30.4.2009
4h45m
http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/reporterdecrime/

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Selo pode certificar a qualidade da polícia
Perícia deve firmar acordo com o INMETRO para avaliar qualidade dos serviços; avaliação pode ser estendida a outros setores da segurança

DAYANNE SOUSA
da PrimaPagina

Um selo de qualidade pode ser criado para colocar em teste a atuação da polícia no Brasil. A proposta ainda não foi formalmente apresentada pela SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública), mas está sendo incentivada pelo setor de perícia. Se confirmada, critérios para avaliação de todo o serviço de segurança serão criados e será possível saber quais unidades policiais têm nível de qualidade considerado bom. No setor de perícia, um convênio entre os dirigentes em todos os Estados e o INMETRO (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial), foi acordado e deve ser oficializado neste mês.
Os peritos deverão criar um selo específico para a área ainda neste ano e, em 2010, começariam as primeiras certificações pelo INMETRO. “Entendemos que a sociedade deve saber qual a qualidade do serviço que estão prestando a ela”, diz o coordenador do Ministério da Justiça para perícia forense, Wagner Barroso. “A perícia está fazendo o seu dever de casa e queremos levar essa lição para outras áreas”, completa. Apesar de confirmada a parceria, o INMETRO preferiu não comentar o projeto.

http://www.pnud.org.br/seguranca/reportagens/index.php?id01=3184&lay=jse

sábado, 18 de abril de 2009

A guerra no Complexo do Alemão e Penha: segurança pública ou genocídio?

Maria Helena Moreira Alves
[...]
A Anistia Internacional e outras organizações internacionais têm divulgado graves denúncias sobre a violência policial no Brasil. É importante, neste contexto, enfatizar que a nova política que está sendo implementada pelo governo do Rio de Janeiro, isto é, o cerco militar de determinadas comunidades, geograficamente definidas, com população de maioria negra, está levantando um debate internacional sobre genocídio. O debate é se o que está acontecendo no Rio há mais de 50 dias pode ser considerado, dentro da legislaçao internacional, como “um padrão que pode levar a genocídio”. Isto é muito definido nas leis internacionais, isto é, ações determinadas e continuadas de política pública que podem levar a uma situação que cause morte, ferimentos graves e impedimento de meios de sobrevivência a um determinado grupo humano. Um grupo populacional com geografia estabelecida, facilmente cercável em um sítio militar, vulnerável a repressão policial, de uma maioria identificada específica, seja ela religiosa, étnica ou racial.
Senão, vejamos: a definição internacional do crime de genocídio está nos Artigos II e III da Convenção de Prevenção e Punição de Genocídio, de 1948. O Artigo II descreve os dois elementos que constituem o crime de genocídio:
1. O elemento Mental, definido como “A intençao de destruir, em tudo ou em parte, um determinado grupo nacional, racial ou religioso.”
2. O elemento Físico, que inclui cinco atos específicos descritos nas seçoes a, b, c, d, e. Citando específicamente a Convenção para a Prevenção e Punição de Genocídio:
Artigo II. “Na presente Convenção, genocídio significa qualquer um dos seguintes atos cometidos para destruir, em total ou somente em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso:
a) Matar membros do Grupo.
b) Causar graves danos físicos e mentais a membros do grupo.
c) Impor, deliberadamente, condições de vida que impeçam a sobrevivência ou dificultem a vida de membros do grupo.
d) Impor medidas que visem a impedir nascimentos dentro deste grupo.
e) Transferir, forçadamente, crianças deste grupo para outros.”
O Brasil é signatário desta Convenção e de outras legislações internacionais de Direitos Humanos, como o Estatuto de Roma. Faz parte dos países fundadores da Corte Internacional de Haya. Como o Brasil assinou e ratificou acordos internacionais sobre direitos humanos, é passível também de ser denunciado por outros países que são parte dos sistemas internacionais e mesmo nas Nações Unidas. Qualquer organização de direitos humanos, como também qualquer grupo de vítimas, podem formalizar uma denúncia contra um país que está praticando sérios crimes contra os direitos humanos.
É extremamente importante que as autoridades considerem seriamente este debate internacional sobre a possibilidade de que o Brasil esteja caminhando para um “padrão de genocídio”. As conseqüências de uma denúncia formal são extremamente sérias para o país e para as pessoas, governantes ou não, que sejam consideradas dentro da denúncia. Chegou a hora em que, realmente, o governo do Rio se sente com as lideranças comunitárias, com os especialistas em segurança humana, com representantes de organizações de direitos humanos e de ONGs que trabalham com esta questão, para elaborar definitivamente uma política de longo prazo que possa estabelecer uma verdadeira segurança para todos os cidadãos e cidadãs brasileiros.
Uma boa pauta seria começar com as recomendações da própria Anistia Internacional explicitadas nos seus relatórios sobre o Brasil.

Maria Helena Moreira Alves é PhD em ciências políticas pelo MIT (Massachussetts Institute of Technology); especialista em Direitos Humanos e política internacional; professora (aposentada) de Ciência Política e Economia (UERJ); leciona freqüentemente como professora visitante em universidades dos Estados Unidos; é autora de 43 artigos publicados em livros e revistas internacionais. Autora do livro premiado "Estado e Oposiçao no Brasil (1964 a 1985)", Editora Vozes, re-editado em 2004 pela EDUSC e publicado em inglês pela Texas University Press em 1984.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Gestão integrada da segurança pública

Vanessa Cortes



Uma breve reflexão sobre mudanças institucionais
A Oficina da Rede Latino-americana de Policiais e Sociedade Civil, ocorrida no II Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em Recife, foi realizada com o objetivo de discutir questões referentes à Gestão Integrada da Segurança Pública 1 através de uma dinâmica participativa. Esta experiência suscitou algumas reflexões sobre mudanças institucionais.
O grupo, de cerca de 40 pessoas, formado majoritariamente por policiais civis e militares de diferentes estados (principalmente dos estados do nordeste) participou de três atividades: apresentação da Rede – seus objetivos e atividades -, exposição de cases dos policiais brasileiros membros da Rede e por último uma dinâmica de grupo. É nesta última etapa da oficina que esta reflexão se deterá.
O método adotado, “árvore de problemas”, consiste em uma dinâmica de grupo que, a partir de um tema proposto, possibilita a identificação de problemas pelos participantes e a proposição de soluções.
O fato que chamou a atenção foi que, após a elaboração da lista de problemas, houve a proposta de participantes da dinâmica de agrupar os problemas de acordo com a “sua natureza”. Os problemas foram divididos em comportamentais, normativos e ainda, uma terceira opção híbrida, “comportamental e normativa” 2, que se fez necessário na medida em que os participantes classificavam cada problema. Só a partir desta classificação foram discutidas as soluções.
O que se destacou com isto é que os problemas classificados como “comportamentais” não implicariam na alteração de lei, mas na forma como os profissionais agem.
Para a maioria dos participantes, as questões mais urgentes sobre a gestão integrada da segurança pública não estão atreladas, em nenhum nível, à alteração da Constituição Federal, que define atribuições distintas às polícias civil e militar. Com a estrutura e limites legais existentes hoje é possível avançar muito em ações e medidas visando à gestão integrada.
Os problemas identificados estão esquematizados no quadro abaixo:






Neste sentido, os problemas “resistência à mudança” e “cultura centralizadora” foram classificados como “comportamentais”, já que eles estão diretamente relacionados à forma como o indivíduo se pensa, pensa o papel social que desempenha, e como ele age. Isto está intimamente relacionado à forma como esse profissional é socializado 3, quais são os seus valores institucionais e padrões de comportamento transmitidos. Neste sentido a solução apontada para o problema da “cultura centralizadora” foi a realização de “seminários de sensibilização” e a “formação continuada integrada”, pretendendo-se, com isto, estimular a reflexão dos agentes policiais sobre o seu papel social, internalizar novos valores e aproximar policiais civis e militares a partir da convivência destes em uma mesma sala de aula sob uma mesma proposta curricular.
Os problemas “legalidade separatista” 4 e “estrutura fragmentada” classificados como normativos, seriam resolvidos com novas regras. No caso da “estrutura fragmentada”, a solução apontada foi “compatibilizar competências, rotinas, meios e procedimentos em nível local”.
Porém é importante problematizar em que medida mudanças técnicas podem alcançar o objetivo de sua formulação sem uma correspondente mudança de atitude, comportamento, valores e crenças dos seus operadores.
A “ausência de modelo de gestão integrada”, “descontinuidade dos programas” e a “ausência de políticas de recursos humanos” implicarão mudanças tanto normativas como comportamentais. Uma vez que, para os participantes da Oficina, estes problemas listados estão intimamente relacionados a uma cultura institucional, e, para que se adotem normas visando solucionar esses problemas, é necessário haver em paralelo a internalização da legitimidade destas medidas. Assim, segundo o grupo a ausência de políticas de recursos humanos poderia ser resolvida através da implementação de um “sistema informatizado de RH”, porém dentro da “lógica” classificatória do próprio grupo, esta medida não basta em si mesma, é necessário estar atento à forma com esta informatização será construída e utilizada. O problema identificado como “ausência de modelo de gestão integrada” poderia ser resolvido com o “aproveitamento de projetos e programas de gestão integrada já existente”, “investimento em projetos e programas em áreas controladas” e o “desenvolvimento e implantação de uma política pública de Estado”, em vez de uma política de governo. Com a adoção de uma política pública de Estado espera-se imprimir estabilidade e coerência às mudanças institucionais e ações na segurança pública.
Contrariando a tendência dos gestores em “testar” novas idéias na capital, os participantes da oficina apontaram as cidades pequenas e de médio porte como locais privilegiados para a aplicação de idéias experimentais que, embora ocorra menor visibilidade política, há dois fatores que fortalecem esta opção: a vida social é menos complexa e há maior probabilidade em mobilizar para a realização de um projeto piloto autoridades dos diferentes setores e níveis da federação.
Quando se analisa as soluções apontadas aos problemas reunidos em cada um dos grupos “normativo” e “comportamental”, observa-se que a sua fronteira contém poros. Visando uma nova forma de “fazer polícia”, é difícil pensar soluções aos problemas a partir de mudanças normativas sem uma correspondente mudança de comportamento, que implica em uma reavaliação dos valores e crenças. Por outro lado, para a construção de uma gestão integrada, a reflexão dos participantes da Oficina sobre problemas que estão diretamente relacionados à forma de ação dos gestores e operadores, não exigiu a priori mudanças normativas, embora as normas tendam a se adequar a novos valores, crenças e práticas sociais.
É importante também considerar as colocações do antropólogo George Foster 5 sobre mudanças tecnológicas e culturais,
"Quando as pessoas se defrontam com novas oportunidades, sua aceitação ou rejeição depende não só da articulação cultural básica, de um padrão de relações sociais favoráveis e de possibilidades econômicas, mas também de fatores psicológicos. Como se apresenta a novidade ao indivíduo? Isto é, como é percebida por ele? Ele a vê da mesma maneira que o técnico especialista que lhe apresenta? Ela lhe comunica a mesma mensagem? (1962: 114)"
Mudanças não ocorrem em um vácuo de valores, crenças, costumes e hábitos. Novas informações e idéias são apresentadas a indivíduos que vão digeri-las, ressignificando-as a partir de sua própria lógica e visão de mundo. Citando, novamente, Foster:
"Ensinar um adulto a ler é um simples problema técnico, mas fazer o adulto querer aprender a ler, ou criar um meio em que seja permanentemente vantajoso para ele fazê-lo, é coisa completamente diferente. (1962:15)"
Desta forma, é fundamental que os operadores de segurança pública participem, elaborem e se comprometam com as mudanças.

Publicado em: http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/39281


Vanessa de Amorim Cortes é mestre em Antropologia, especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública e pesquisadora do Viva Rio.
1 É importante destacar que, no Brasil, há o ciclo incompleto de polícia. Desta forma cabe a Polícia Militar a função ostensiva e a Polícia Civil a função investigativa.
2 Os termos “normativo” e “comportamental” não serão tratados neste texto como conceitos teóricos, mas como categorias nativas informadas pelos profissionais de segurança que participaram da oficina.
3 A ênfase dada a socialização através da formação profissional não desconsidera que o individuo participa de diferentes espaços de socialização.
4 O termo “legalidade separatista”foi elaborado e apresentado por um dos participantes da Oficina para expressar a existência de leis que dificultam a integração de instituições.
5 FOSTER, George. As culturas tradicionais e o impacto da tecnologia. Editora Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1962.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Territórios e Poderes


[...] Assim como tratar de fronteiras entre países significa abordar valores fundamentais para a orientação dos governantes, da mesma forma propor-se a reavaliação de fronteiras institucionais é colocar em xeque paradigmas profissionais. Dentre estes, a tomada de decisão é um exemplo fatídico a ser refletido. Neste norte provoca-se: como podemos conceber uma tomada de decisão compartilhada? É possível tomar medidas, antecipando-se à pressão da mídia? Ou, diante de uma seleção de alternativas, preparadas por especialistas ou apresentadas por representações sociais, qual seria o comportamento do gestor? De outra forma, já ingressando nos riscos de um modelo gerencial deste porte, como enfrentar as parcialidades?Mudar de atitude vincula-se ao aprendizado, não bastando dispor-se da informação tem-se, ainda, que transformá-la em conhecimento, em uma evolução do nível cognitivo que depende de motivação (o pulsar interno do indivíduo), ou seja, o sujeito é o responsável por qualquer mudança. Na lógica, sabendo-se da importância da formação de uma rede de ações, passa-se a agir como ator nesta auto-organização e estimulador do diálogo para o encontro de soluções conjuntas. Isto nos garante uma forma mais ampla de vermos nosso espaço e tempo. Instaura o mister da intervenção trazendo à baila a lição de Paulo Freire (1996): “Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de se adaptar a ela” (p.77). Alerta-se, porém, deparar-se com a realidade e efetuar uma constatação não é suficiente por si só, são apenas passos iniciais para traçarmos estratégias que demandam outros atos como: comprometer-se com o caminhar, explorar, comparar, exercitar a interação, executar, além da avaliação continuada das ações.

O romper barreiras é, na simplicidade da proposta, um suporte decisivo, contudo é ao mesmo tempo um forte empecilho a sua realização. Poderíamos tratar de forma extensa este ponto, mas como se relaciona à criação de limites e manutenção de poderes far-se-á uma breve referência a dois autores: Michel Foucault e Desmond Morris. Inicialmente, Foucault (2002), tratando do espaço amplo de administração (seja governo, família, etc.) e abordando a obra O Príncipe de Maquiavel, observa que: “o objetivo do exercício de poder é manter, reforçar e proteger o principado, entendido não como o conjunto constituído pelos súditos e o território, o principado objetivo, mas como relação do príncipe com o que ele possui...”. Ora, esta forma de administrar voltada para a proteção do príncipe, na verdade, prescinde o “bem comum”, além de negar a existência, na sociedade, de outra forma de poder. Estes pontos são fundamentais para a reflexão sugerida. Os poderes e territórios erigidos a partir do exercício da administração pública (compartimentada em “jurisdições” e “circunscrições”) trazem ao curso desta apreciação um aspecto instintivo de criação de limites e fronteiras tal qual descrito por Foucault.De outra sorte, demonstrando quanto é natural esta criação de fronteiras regressamos ao próprio indivíduo. Para tanto, citamos Morris (2006), que retrata o animal humano através de seus instintos mais primitivos. Descreve que os animais lutam entre si por duas razões básicas: para estabelecer o domínio em uma hierarquia social e para demarcar território. Pertencemos ao grupo que reúne estas duas formas de comportamento. Segue a análise até chegar às relações sociais. Ali, identifica que o comportamento desenvolvido pelo “animal pelado” coloca-se entre a imposição e a submissão. Por derradeiro, registra que o isolamento em pequenos grupos está presente no comportamento humano e sentencia:“ Claro que nós não evoluímos para viver em monstruosas aglomerações de milhares de indivíduo. O nosso comportamento foi concebido para agirmos em pequenos grupos tribais...” ( p. 196). Ou seja, colocados lado a lado o instinto segregador, a autoproteção, o exercício de poder e a retomada de posição neste mundo conectado temos uma amostra do quanto se tem de superar até chegarmos ao compartilhamento de gestão e definitiva ação. Neste momento ressurte novas questões : A gestão da segurança pública está se comportando de forma transcendental, como se estivesse posicionada externamente em relação às comunidades? O trabalho é realizado em função de prestação de contas à comunidade ou a instâncias institucionais ou políticas? As divisões territoriais, inerentes à organização do sistema de segurança, geram poderes que servem para afastar ou aproximar as partes deste sistema?Ainda, na prática poder-se-ia admitir que o administrador, ao ser investido do poder legal para o exercício de sua atividade, cria instintivamente fronteiras, as quais são necessárias para o cumprimento deste papel, porém, até o instante do prudente exercício da dialogicidade no escopo da eficiência administrativa e, por fim o bem da sociedade. Frisa-se, a comunicação é básica nesta visão sistêmica e não deve ser entendida de forma restritiva, aliás, nenhum tema pode sofrer limitação. Dunning e Hochestedler (2002) já reconheciam sua importância registrando que ela se revela como um componente crítico em uma organização policial. A comunicação deve ocorrer não só com agentes externos, mas principalmente com nossos colaboradores diretos.

Sérgio Flores de Campos . Nova Polícia de Conectividade. Publicado em :
http://www.forumseguranca.org.br/artigos/a-nova-policia-de-conectividade

sábado, 21 de março de 2009

Tropa, elite e o imaginário

Sérgio Flores de Campos
(http://www.forumseguranca.org.br/artigos/tropas-elites-e-o-imaginario)Referência- Filme Tropa de Elite

Inicialmente, conceituemos superficialmente “tropa” como sendo um conjunto de pessoas sob um regime diferenciado. Já “Elite” traz na sua essência características como distinção, poder e liderança, porém sem ser limitada a uma classe específica, uma vez que podemos encontrá-la em qualquer grupo. O imaginário é definido por Duran (1997) como um conjunto de imagens e interações de imagens que formam o ser humano. No momento em que passa a fazer parte do homem esta aura interfere nas suas ações. Então, o imaginário é real, ele age sobre as pessoas. O imaginário é encontrado, por exemplo, na reprodução das preocupações de um momento histórico em uma produção cinematográfica. Diante da tela de projeção a imagem exige um mergulho a sua plenitude e mergulhando experimenta-se sua profundidade. Na medida em que experimentamos acionamos nossos sentidos, assim, incorporamos a imagem a nosso imaginário, a qual repercute em nossas atitudes. É uma roda viva de produto e produtor. Um filme que tenta espelhar uma cultura organizacional torna-se produto e produtor do imaginário social. Sobre ele é possível jogar memórias pessoais, interpretá-lo como uma realidade distante ou próxima. Dele jorram conceitos oriundos de mitos, estereótipos e fantasias, os quais geram outros mitos, estereótipos e fantasias, porém imersos em uma consistente realidade.Não se tem, aqui, a pretensão de subestimar a capacidade cognitiva do espectador diante da obra, não, chama-se a atenção, isto sim, para a redução analítica a que ele possa se sujeitar, invariavelmente em um código binário: o bom e o mau, o certo e o errado, encantador ou asqueroso, a virtude e o vício ou a truculência e a corrupção. Como se não houvesse entremeios e perpasses. Em uma ingênua generalização. O entrelaçamento entre platéia e obra, portanto, é um fato. Morin (1997) já afastava a idéia de passividade do espectador, reforçando o entendimento de que entre a imagem e a assistência há uma relação, uma interação. Assim, é interessante supor os efeitos difusos de uma obra como “Tropa de Elite”, alvo deste exercício, no imaginário de profissionais de polícia, enfim, no conjunto social. . Voltando ao trato dos efeitos desta obra, em relação aos profissionais de segurança, aventa-se a possibilidade dela vir a se firmar como plena verdade, uma heróica verdade e, conseqüentemente, reforçar atitudes que ali encontram guarida para se reproduzirem. É uma questão de visibilidade. Sabe-se mais, temos essa pulsão de vermos e sermos vistos – Quinet (2004) a identifica como pulsão escópica – então, através do filme se vê e se é visto. Arendt (2004, p. 199) diz: “Só podemos saber quem um homem foi se conhecermos a história da qual ele é o herói”. Não se pode tirar do homem a possibilidade de ele ser o ator de sua existência, muito menos é possível isentá-lo das conseqüências de suas escolhas. Ao “ver”, identifica-se com o mito, ao “ser visto” satisfaz-se pela razão de ser notado e identificado. Em outro momento, quem sabe já como Corporação, percutir estratégias educacionais e comunicacionais para uma recomposição da identidade e da imagem institucional. Ainda, diante da materialização dos padrões do comportamento profissional, chegar à transformação de processos ou mantê-los, “por falta de opção”? Exultando-se, portanto, a capacidade das lideranças -elites- a sentirem o gosto, o cheiro e a textura do sistema onde estão imersos. Afinal, expressa Karl Popper citado por Morin (1997, p. 14 ): “Pessoalmente julgo que existe pelo menos um problema... que interessa a todos os homens que pensam: o problema de compreender o mundo, nós mesmos e o nosso conhecimento enquanto parte do mundo”. Em uma última reflexão, ao ver o cotidiano da polícia subindo o morro, nos ocorre uma comparação com o mito grego de Sísifo que rola uma grande pedra colina acima, ao chegar ao cume a pedra rola para o outro lado abaixo, é um eterno trabalho. Por sua vez, supomos em outro grupo social, que haja tolerância com os métodos - de força - apresentados (enquanto forem aplicados a uma distância segura ), já que diante da urgência justifica-se a simplificação do enfrentamento: a violência resolvida pela violência. Em um terceiro conjunto, quiçá, grassa que o inimigo foi desmascarado e que as incivilidades, por ele praticadas, não se justificam, mesmo diante das suas próprias. O filme, desta maneira, transforma-se em um Panóptico em que o alvo passa a ser o observador. Foucault (1999) propõe, em seu projeto, que o supervisor oculto manteria o poder sobre os internos a quem vigiava. Aqui a vigilância passa a ser da platéia sobre a imagem que materializa o Estado, no seu imaginário. A obra, em sua superfície e em sua profundidade, mostra não uma instituição, ela capta uma sociedade. Não se pode negar a noção de unidade global. Para Maffesoli (2001):“ [...] o criador, mesmo na publicidade, só é criador na medida em que consegue captar o que circula na sociedade. Ele precisa corresponder a uma atmosfera [...]estar em sintonia com o vivido [...] A genialidade implica a capacidade de estar em sintonia com o espírito coletivo. Portanto, as tecnologias do imaginário bebem em fontes imaginárias para alimentar imaginários.” Estamos diante da exposição de um sistema e de suas interações, porém alguns da platéia ainda podem não ter descoberto que polícia é parte da sua sociedade. É por ela formada e reproduz os seus matizes.Acresça-se, neste tecido social em todas as suas instâncias, também são identificadas lideranças e jogos de poder a influenciar, não raras vezes de forma velada, a conduta e a forma de percepção de um ente social. Deste sistema é que emerge a obra a demonstrar uma equação interessante, o todo e muito mais do que a soma das partes na medida em que as criações e os arbítrios exercidos transformam-se em produtos que superam os limites deste todo (que pode ser um grupo, uma instituição ou uma sociedade). Nesse passeio pela tela, cenários, roteiro, atores e platéia, aguça-se a pretensão de solucionarmos infinitas questões: É assim? Age-se assim? Continuará assim? Qual o motivo de ser assim? Porém, enquanto perdurar a possibilidade de diálogo entre os fatos da ficção e da realidade, todos estarão imersos na constância da incerteza e da reflexão. Contudo, o imaginário já será produto das imagens a que foi exposto, a platéia não mais será a mesma de antes da viagem pela obra.

BIBLIOGRAFIA

DURANT, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Martins Fontes. São Paulo. 1997.
MAFFESOLI. Michel. Imaginário e uma realidade – entrevista concedida a Juremir Machado da Silva. Revista FAMECOS. Nº 15..Porto Alegre, Agosto 2001.
MORIN. Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Editora Relógio d’Água Lisboa.1997.A natureza da natureza. Publicações Europa-América. 3ª Edição.Portugal.1997.
ARENDT. Hannah. A condição humana. 10.ed. Forense Universitária. Rio de Janeiro. 2004.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 19. ed. Editora Vozes. Petrópolis. 1999
QUINET, Antonio. Um Olhar a mais : ver e ser visto na psicanálise. Editora Jorge Zahar. Rio de Janeiro. 2002