segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Obstáculos Epistemológicos à Reforma Policial


Conversa com Bachelard...


Num desses dias, angustiado com as altas taxas de criminalidade e com os descaminhos com que a política de segurança pública vem sendo conduzida em todos os níveis de governo, apelei para o ser supremo, pedindo a ele que interviesse nos corações e mentes de nossos governantes, iluminando com sabedoria e razão, as decisões políticas que efetivamente poderiam fazer a diferença. Pedi também uma intervenção divina no sentido de agraciar os gestores da área de segurança pública com a superação de suas próprias vaidades e com a libertação do próprio espírito em relação às velhas práticas empíricas, amoldadas em padrões paradigmáticos que se convertem em doutrinas dogmáticas, muito distantes das verdadeiras demandas e expectativas da sociedade, longe, portanto, da possibilidade concreta de intervir positivamente sobre a realidade.
Nessas andanças metafísicas, qual não foi o meu espanto ao reencontrar-me com um velho amigo francês chamado Gaston. Extremamente solidário com a causa por mim pleiteada e numa clara tentativa de trazer um pouco de conforto a minha pobre alma, Gaston pediu licença, como toda a autoridade de quem há pouco tinha enfrentado um dilema similar, e me disse com toda ternura:
Meu nobre amigo, antes de tudo fique tranqüilo e, por favor, não se aflija com as artimanhas do saber, pois o conhecimento é dinâmico e inerente ao ser humano. Tampouco se preocupe tanto com aquilo que é empírico, posto que é tão somente a expressão de um conhecimento diferente daquele que costumamos chamar de científico. São conhecimentos diferentes, obtidos por métodos distintos. Não há, portanto, concorrência equivalente entre ambos. O que de fato é bastante preocupante, e nesse ponto concordo plenamente contigo no que concerne ao seu sentimento de aflição, é a dificuldade e a lerdeza que se verifica no tratamento político que é dado pelos governantes para viabilizar a superação de determinados obstáculos epistemológicos que impedem o desenvolvimento científico dos profissionais das organizações policiais aí no Brasil. É bom ressaltar que os obstáculos em si não são o problema, haja vista que sem eles não haveria estímulo ao desenvolvimento científico. O principal problema reside na pusilanimidade com que autoridades do Poder Público tratam essa questão. E é justamente sobre isso que gostaria de tecer algumas considerações: independentemente do reconhecimento sobre a existência de fatores que obstaculizam a produção do conhecimento científico, mas que podem ser superados, conforme escrevi alguns anos atrás, existe outros que estão diretamente afetos a uma decisão política, no nível governamental ou institucional. Em outras palavras, o desenvolvimento do espírito científico dos profissionais de segurança pública não se resume à mera superação dos obstáculos epistemológicos. Demanda uma política pública de formação desse capital humano, com investimentos do Poder Público no que tange à capacitação e aperfeiçoamento dos seus servidores, esforço qualificado de estudo e de pesquisa por parte dos policiais e, principalmente, coerência axiológica entre teoria e prática. Sobre a superação de alguns obstáculos epistemológicos no campo da segurança pública, levando-se em conta o marco legal brasileiro e outros traços que permeiam a cultura organizacional das instituições policiais, diria o seguinte: em linhas gerais, o modelo adotado pelo Brasil de funções policiais bipartidas ensejou a configuração de dois pólos de atividades que caracterizam o trabalho policial. O primeiro pólo, exercido nas ruas pela Polícia Militar está baseado no paradigma militarista e o segundo, exercido no cartório pela Polícia Judiciária, está baseado no academicismo jurídico. Enquanto no primeiro prevalece o dogma doutrinário da força como expressão predominante da ação policial e o dogma doutrinário da hierarquia e da disciplina militar como expressão da ordem, o segundo abdica da vocação original do trabalho policial investigativo, orientado para a produção de provas e se dedica, seguindo o dogma doutrinário do direito, a administrar diferentes formas e leituras da produção da verdade. Meu caro, a partir dessa sucinta análise preliminar, ouso afirmar que: as expressões dogmáticas que governam o modo de fazer polícia no Brasil e, portanto, o modo de se fazer política, castra qualquer possibilidade de inovação e de ruptura com a inércia institucional. É muito difícil teorizar em ambientes políticos- institucionais dominados pela lógica dogmática que se exterioriza na forma recorrente de velhos paradigmas. Nesse contexto, meu velho amigo, é impossível fazer ciência, haja vista que dogmas e paradigmas impedem que seja estabelecida uma legitima relação entre sujeito e objeto, que são as partes constituintes da matriz essencial para a produção do conhecimento. Se a existência dos obstáculos epistemológicos, compreendidos estes como fatores inerentes e intrínsecos ao próprio pesquisador já constitui por si só um ponto de superação que precisa ser trabalhado em prol do desenvolvimento do espírito científico, o que dirá no caso do investigador que se encontra imerso num ambiente institucional de inércia. Nesse caso, como disse anteriormente, a questão é política e como tal deve ser tratada. Não obstante o reconhecimento dessa dificuldade extrínseca ao desenvolvimento do espírito científico, é muito importante, conveniente e oportuno destacar que o principal fator de superação desses obstáculos intrínsecos, reside basicamente na determinação e na constância do pesquisador fundamentalmente em face da relação estabelecida entre sujeito e objeto. Nesse sentido, meu amigo, como sugestão é necessário que se inicie aí no Brasil, desde já, uma campanha para pressionar os governos e para inflamar mentes e corações com vistas à ruptura desse estado de inércia. Destarte, de suma importância para o desenvolvimento do espírito científico nas organizações policiais brasileiras, é que, no âmbito da experiência comum, haja a contradição, que se critiquem e se refutem os dogmas e os pré-conceitos. Do que escrevi sobre os obstáculos ao desenvolvimento do espírito científico, lembro-o das seguintes questões que convém atentar: 1) pelo fato da experiência primeira estar imune a críticas ela mesma pode se converter no primeiro obstáculo ao desenvolvimento do espírito científico; 2) uma leitura equivocada do conhecimento geral enquanto doutrina do saber também pode se converter em obstáculo ao desenvolvimento do espírito científico; Faço este alerta em nome da razão e da premente necessidade de libertar as academias e os centros de formação policial dos grilhões imponderáveis de verdades e saberes tidos como absolutos e incontestáveis. Nesse caso, por exemplo, é recomendável, que no âmbito do processo de ensino-aprendizagem a que estão submetidos todos os policiais, especialmente em virtude da intensa variedade de disciplinas e da extrema complexidade de situações que caracteriza a dinâmica do trabalho policial, sobretudo, na dimensão cotidiana da gestão do serviço e do emprego de técnicas avançadas mediação de conflitos e de administração do uso legítimo da força legal, que a perspectiva holística esteja sempre presente e seja bastante valorizada na construção cultural do saber crítico que não pode ser confundido com o saber fragmentado, quase sempre de natureza instrumental. Nesse sentido, caríssimo amigo, a reprodução predominante das relações de subalternidade na hierarquia organizacional das polícias não deve e não pode, sob nenhum pretexto, ser transportada mecanicamente para a sala de aula. Aliás, diga-se de passagem, que no âmbito de um convívio democrático progressista, não há nenhuma contradição entre a liberdade de participação e expressão com o respeito aos valores da hierarquia e a disciplina.

Um abraço fraternal,

Bachelard

Postado por Carballo Blanco - Sexta-feira, 19 de Setembro de 2008
Fonte: http://agendadacidadania.blogspot.com/search?updated-max=2008-10-02T07%3A24%3A00-03%3A00&max-results=50

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